quinta-feira, 2 de abril de 2015

Manoel de Oliveira




Podia dizer que há pessoas que nunca morrem, como digo sempre que alguém maior morre. Digo morre porque não gosto de suavizar as coisas. Partir não sei se partiu, sei que o corpo está cá e por aqui vai ficar quer na terra, quer em cinzas espalhadas na água ou no mar, ou enclausuradas num pote caríssimo numa casa caríssima. A alma não sei para onde foi, tão pouco sei se alma existe ou se não passa de infinitos impulsos eléctricos produzidos por um corpo que entretanto morre. Mas se a alma existe podemos pensar que se desfragmentou e talvez aí seja correcto dizer que ela partiu, ou que  pelo menos se ausentou por tempo indeterminado, porque tão pouco sabemos se a alma renasce com outro ser, ou se fica invisível entre nós. Morreu e com ele esfumou-se o seu presente e a sua memória. Ficam os filmes de que eu ainda não aprendi a gostar, mas o resto morre. Diz-se que fica a memória, mas tanto eu como o Manoel achamos a memória uma invenção. E é verdade que podemos estar errados, pelo menos eu errado no presente , porque ele já não pode estar errado no passado. Morreu, mas por enquanto ainda existe, nos filmes e na memória inventada ou não por cada um de nós, mas um dia morrerá outra vez quando deixar de existir em filme ou em qualquer memória de alguma pessoa viva. Eu nunca o vi, mas lembro-me dele a dançar de chapéu e bengala tal Fred Astaire de 100 anos e juro que ainda hoje me rio sempre que me lembro do neto confessar que não conseguia acompanhar o avô a conduzir em Lisboa. Mas eu ainda cá estou, ele também ainda cá está, mas eu ainda vivo o presente e invento memórias, ele já não vive nem inventa, mas deixou vários mundos inventados. Não sei como acabar isto, se eu fosse a morte era fácil, acabava de repente e pronto, mas não sou e então não sei. Se um dia me perguntarem como quero ser quando for velho, respondo que quero rir do presente e do passado, porque se quase nada vemos do presente, porque havemos de levar a sério o passado? Vão ver que um dia ainda havemos de descobrir que as pessoas que dizemos que partem, estiveram afinal sempre aqui entre nós, a ouvir-nos as memórias inventadas deles próprios e a sorrir envergonhadas.

segunda-feira, 2 de março de 2015

Somos números e rectas

Vivemos num mundo de mentirosos
de gente que combate a verdade
que nos tira a carne e nos deixa os ossos
de gente que acha injusta a igualdade

como uma noite escura de lua nova
que as luzes dos candeeiros não acendem
em que as escutas não são prova
e a mentira a verdade que nos vendem

somos para eles as marionetas
do espectáculo que eles encenam
somos gráficos e rectas
somos números que nos condenam

E as mentiras são verdades inventadas
onde a palavra e a honra não cabem
os jornais e a TV as armas usadas
para garantir a certeza de que nos vencem

E nós sem sabermos que estamos em guerra
habituados a viver conformados nesta paz
que nos faz querer deixar a nossa terra
que nos faz ficar cada vez mais para trás

E os anos passam sem vitória aparente
num país censurado pelo medo
Em que quem ganha é quem mais mente
e o povo é tratado como um brinquedo

somos para eles as marionetas
do espectáculo que eles encenam
somos gráficos e rectas
somos números que nos condenam

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

O bicho



Desfio o tempo com os dedos, mas já não há tempo que apague as dores. Tive um monstro cá dentro, mas arranquei-o com uma enxada. Falta-me um peito, mas nunca consegui arrancar o coração. Queria mandá-lo para ti. Ele nunca deixou de ser teu. Estranho tudo em meu redor. Choro num canto escuro por entre a noite. O bicho gosta. É de lágrimas que ele se alimenta. Estou viva, mas não entendo porquê. A vida não tem de ser entendida. Mato saudades nos sonhos. As tuas mãos nas minhas. O teu calor no meu frio. Sempre tive frio a mais e tu calor de sobeja. O teu coração era tão forte que implodiu e eu tenho uma ferida que não sara. Coço a perna e sinto o coração. Recebo ordens, pouco mais sou do que um corpo sem vontade. Queixo-me. Quem não se sabe queixar? Será vontade no meu corpo? Choro, mas não verto lágrimas. Matei o bicho à enxadada. Acho que gastei as lágrimas todas aí. Despeço-me de todos pela última vez mas o amanhã não deixa de chegar. De vez em quando sorrio. Não preciso de dentes para sorrir. Morreste mas o peito só saiu arrancado. Cada um que mate os seus bichos. Nunca foste a lado nenhum, eu nunca te deixei partir. Fecho os olhos e vejo-te. Às vezes também vejo os meus netos. Às vezes encontro os meus filhos. Nunca deixamos de ser mãe. Morre-se e a mãe fica cá com os filhos. Choro pelos cantos. Alimento o bicho com lágrimas. Nunca chegaram a secar. Chega! Enfio as mãos pela barriga, desvio as vísceras e vou-lhe ao pescoço. Afinal não preciso de enxada nenhuma. Nada me dói, mas eu choro? Que lágrimas são estas que me correm? Vou-lhe ao pescoço e não o deixo respirar. Invento dores. Tenho pena de mim. Tudo me faz mais fraca. O amor traz-me medo agora. Só medo e nenhuma coragem.Não me reconheço, pequena e frágil. Sou tão pequena como o bicho. Do tamanho de um bago de uva. Mas de mim não sai vinho nenhum. Às vezes sangue, mas lágrimas não. Fecho os olhos e vejo-te. Cá dentro já só brilhas tu. Quando morrer hás-de estar à minha espera, mas a morte não chama por mim. Tenho medo. O bicho cresce mas eu não largo. Hei-de esganá-lo sozinha. Fecho os olhos e dás-me as mãos. A tua força. Levas o bicho contigo mas deixas-me cá. Um dia levas-me a mim. Hoje não. Hoje não.

sábado, 17 de janeiro de 2015

Sejam felizes






À minha frente tenho uma foto de quando eu era criança. Está frio, mas lá fora os pássaros cantam uns para os outros debaixo do sol de inverno. Acabei de entrar no ano de 2015 e, diante de mim, tenho o ano mais desafiante e decisivo da minha vida. E ao dizer estes chavões, algo em mim se interroga e interpela, um ano que não é mais do que uma volta ao sol, a suspeita contagem tendo por base o nascimento de cristo e, o tempo, o tempo que não descansa, que por nada se deixa suster, o presente que já é passado, o futuro que ainda não nasceu presente e o insaciável passado, que se alimenta de segundos e horas e que cresce e cresce, até ao firmamento da imaginação. Mas que por agora, se resume à forma de um puto traquina a desafiar-me para jogar à bola.

Um ano inteiro pela frente. 365 rotações da terra a mais ou menos 30 km/s, com a consequência directa do meu ombro direito ficar mais baixo do que o esquerdo, sofrendo com isso a minha coluna. 

- Se há coisa que não conseguimos contrariar, é a rotação da terra.

Diz o meu osteopata de más circunstâncias, que é como quem diz que se há coisa que não conseguimos controlar, é o tempo. Tenho 35 anos e com isto, o meu passado há-de ser quase tão grande, como aquele que hoje ainda é futuro. Um futuro que toda a gente quer que seja presente em vez de ausente.

- Eu só quero ser feliz!

Diz-se com um sorriso cheio e uma mente vazia, imaginando o incansável sorriso no intervalo das gargalhadas, que deverão ser constantes e intensas em som e em ausência de pensamento. Sorrisos e mais sorrisos e nenhuma lágrima, nenhum momento de ódio ou de revolta, nem uma pinga de dor. Como se pensa enquanto nos rimos à gargalhada? O inevitável  desejo humano da felicidade está longe de ser apenas alegria vã e insipiente que facilmente se mascara de felicidade, mas também estupefacção, indignação, ciúme, inquietação, medo e até tristeza.  Só quem pede felicidade, sabendo que estará também a pedir tristeza, poderá experimentar a felicidade por inteiro. 

- Não penses mais nisso!

Tenho 35 anos e à minha frente tenho uma fotografia de quando eu era puto. Sorriso traquina a morder o lábio com uma bola amarela aos pés. Não tenho medo de nada para além de mim próprio e se não sorrio é porque estou a pensar.
- Nunca me escreveste nada filhote…

A minha mãe é a minha génese. O ser dentro do qual cresci até ser capaz de existir pelos próprios meios. Não te escrevo porque não compreendo o amor de mãe. Nem sei se é suposto os homens compreenderem o amor de mãe, ou se isso apenas é permitido a quem de facto é mãe, ou mulher pelo menos. O inexorável e inquebrantável amor. A minha mãe… A minha mãe pergunta-me o que me apetece comer e cozinha-o melhor do que ninguém, a minha mãe tem um sorriso que lhe enche a cara toda, a minha mãe tem uns olhos grandes e cheios de amor. A minha mãe tem cabelo preto como eu. A minha mãe dá-me coisas às escondidas do meu pai, dá-me esperança em troco de sossego, a minha mãe deixava a luz do meu quarto acesa para afastar os monstros. Um eterno acreditar e acreditar. Um amor tão grande que me oprime, um amor que não foge, que se assusta, mas que nunca larga a mão. A mão que me levou para o hospital em segurança, a mão enquanto o médico me torturava, a defender-me de castigos, a comprar-me tempo, a amparar-me as falhas e as agruras de adolescente mal resolvido. E não só a mão, mas um corpo inteiro dado às balas, para bem dos filhos queridos, uma abnegação que não conhece limites humanos - A eternidade. 

- Ficava tão triste se um de vocês emigrasse…

Mas estamos cá os dois e somos amigos, seremos sempre amigos, os melhores amigos um do outro. Eu sei que ele faz tudo por mim e ele sabe que eu faço tudo por ele. Que mais precisamos de saber para nos chamarmos irmãos? 

- Vou para a Alemanha!

O mundo de cada um de nós é um puzzle incompleto, uma constante experimentação que termina sem que nos possamos dizer completos. Tentamos encaixar peças rodando para um lado e para o outro o nosso puzzle suspenso no espaço. Frágil, mas suficientemente estável para que o possamos sentir como verdadeiro. Damos de caras com peças que vagueiam pelo ar. Desconheço se os corpos maiores atraem os mais pequenos, mas suponho que as leis da gravidade não se apliquem onde os corpos não têm massa. Rodamos para um lado e para o outro, encaixamos, mas assim que nos distraímos elas soltam-se e desaparecem. Às vezes algumas extremidades já mais consolidadas cedem, quando acrescentamos mais peças para um lado ou para o outro. Um equilíbrio frágil, que se transfigura com o passar dos anos. Um centro imutável, mas tudo à sua volta passível de mudança, perda e descoberta. E de repente uma peça central que decide partir. E depois outra e outra, sem que o nosso puzzle consiga esticar-se de um hemisfério ao outro.

- Em Setembro estou de volta…

As amizades nunca morrem mas os blogs sim. Este era para morrer aqui mas mudei de ideias e eu sou um puto traquina à beira mar com uma bola amarela aos pés. Não podia ser mais velho agora do que no início. Mordo o lábio e mantenho a muito esforço as mãos caídas. Não sou gajo de ficar quieto, seja lá por causa de uma fotografia ou por causa da preguiça. À minha frente tenho a areia da praia e uma vida inteira. 

- Tu és capaz de fazer tudo!

Dizes-me com a confiança de quem só pode ser mulher. Acho que os homens só crescem por causa das mulheres. 

Estou sentado no início de 2015. Tem estado frio, mas lá fora os pássaros nunca deixam de cantar. Escrever demora tanto tempo que devia dar direito a parar o tempo, que para  o puto à minha frente parou tinha ele 6 anos. Com o olhar, lembra-me em jeito de desafio que tenho pela frente o ano mais decisivo da minha vida. 

- Se não fores capaz és medricas!

Não tenho medo de nada. Olho em frente e avanço sem que nada atrás de mim me detenha. Dos monstros não há sinal, porque em cada canto escuro está um candeeiro cheio de esperança e de sonhos. Sigo os caminhos que eu quero, viro a direita, dobro a esquina à esquerda e subo as escadas que eu quiser subir. Sou tão feliz quando choro como infeliz quando sorrio, tenho tanto medo quando avanço, como coragem quando paro. Há peças que vão mas há peças que chegam e ficam.
Nada me derruba, tudo me acrescenta.
Chuto a bola amarela para a frente e de repente desapareço.

- Não me vês?

- Eu vou estar sempre aqui ao pé de ti.


terça-feira, 19 de março de 2013

Pai

É um facto e os factos ficam mais claros com o correr dos anos. É-me impossível contrariar o inevitável. Por muito que queira ou que tenha querido, sou aquilo que sou e o que irei ser, por ter nascido de quem nasci, e por ter crescido no mundo de quem me trouxe ao mundo. Eu sei, pouca coisa no meu comportamento revelará isso, talvez apenas pequenas coisas que secretamente desejo que vocês percebam, mesmo que elas me possam sair de forma quase sempre involuntária. Mas não será assim com todos os momentos reveladores do amor verdadeiro? Não sei, mas quando olho para trás sinto que o medo passou e ficou apenas um respeito que me prende à terra as vezes todas que forem precisas. Não que as duas ou três palmadas que me deste me tenham intimidado, sou demasiado teimoso para isso, mas não sei porquê foste sempre tu em quem pensei quando algum percalço me aconteceu. Foste sempre tu quem mais temi desiludir e no entanto, foste tu quem eu mais vezes desiludi. Vale-me de alívio saber que algures de dentro do sitio onde se esconde o amor verdadeiro, terão saído o mesmo número de perdões e certezas capazes de me fazer crescer. Eixos estruturantes da alma, setas de sentido único, mas com todas as saídas abertas que me hão-de ter trazido a quem eu sou agora, neste preciso momento em que te escrevo este texto.
Lembro-me que um dia em Marinhais, te perguntei que livro vermelho era aquele que andavas a ler há tanto tempo, e de tu me teres respondido que se chamava "Perestroika". É verdade que por muito que eu tente, não me consigo lembrar da tua resposta para além do nome do livro, mas foi essa resposta por entre tantas outras que me deste, que foram abrindo os horizontes do meu olhar. Eu sei, eu sempre fui de fazer muitas perguntas e às vezes acho que vivo numa eterna idade dos porquês, mas foste sempre tu quem me guiou no meio das dúvidas e das incertezas, foste sempre tu quem me completou as histórias contadas pela metade por um professor mal amanhado e hoje, apesar de continuar a recorrer a ti nas equações de raciocínio mais complexas, encho-me de orgulho quando me pedes uma opinião, ou quando me encomendas um discurso sobre o mesmo tema de que tantas vezes falámos no passado.

- Vai com juízo

E esta frase repete-se dentro de mim sempre que me vejo a perder o controlo ou sempre que exagero uma ou outra reacção. Às vezes tenho pena de não ter começado a ouvir-te mais cedo, para além do medo infantil que agora é respeito, desse teu olhar que me manteve na linha sempre que foi preciso e também sei que tu achas que aqui ou ali, foste tolerante demais para comigo, mas teria sido eu melhor pessoa se não tivesses sido assim? Não sei... Sei pouca coisa neste mundo para além daquilo que que eu sei que não quero, mas mesmo assim até isso vai mudando ao longo da vida não é?

- Quando um dia fores pai nós falamos.

Ainda não sou pai e tu ainda não és avô, mas não há ninguém que mereça mais sê-lo do que vocês os dois. O cúmulo do carinho e do amor em duas pessoas só. E tu uma criança na casa dos sessenta que merecia ter uma criança na casa dos zero para brincar de vez em quando, até porque toda a gente que nos conhece percebe, que tanto eu como o Zé Carlos somos velhos demais para brincar contigo e que não há, naquela casa em que já não vivemos juntos, ninguém mais jovem do que tu.

- Amanhã vou escrever um postal para o meu pai.

Não saiu um postal, mas saiu um texto sincero, vindo lá do sítio onde se esconde o amor verdadeiro, que eu acho que é algures aqui para os lados do coração. Demasiado intimo para se publicar eu sei, mas este não sei se é, mas podia muito bem ser um texto de agradecimento por terem sido lágrimas tuas que eu não vi sobre um postal meu, a fazerem-me perceber que eu até podia escrever qualquer coisa de jeito. E de tão intimo,  ainda fiquei indeciso se ligava o teu nome a este texto, mas depois lembrei-me que não é preciso ligar-te a nada, porque o teu sangue corre dentro de mim.

beijinhos

Obrigado por tudo.

Bruno Leal

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Numa manhã de tempestade



São 9 e meia da manhã de um sábado que promete ser de tempestade. Quando cheguei o sol brilhava e o vento soprava fraco, mas agora já se escondeu por trás das nuvens escuras enquanto a brisa começa a transformar-se em rajadas de vento norte e eu estou dentro de água sozinho, com um mar que me impõe tanto respeito como medo. A uns 100 metros de mim, vejo mais 2 ou 3 sentados a olhar de frente para o horizonte, um deles parece ter um gorro térmico enfiado na cabeça e eu com o frio que está, começo a pensar se não valia a pena comprar um, enquanto penso que nem dentro de água numa manhã de inverno, somos capazes de esquecer a azáfama consumista em que vivemos. Não, eu não escrevi isto dentro de água, mas foi lá dentro que me lembrei outra vez do dia em que os meus pais me compraram, a minha defunta suntalon amarela no Continente de Alfragide e foi lá dentro, que me lembro de ter pensado que já se passaram mais de 20 anos e que se esta vida parece que passa a correr, é porque nos esquecemos da maior parte das coisas pelo caminho. Mas desta não me esqueço e recordo como se tivesse sido ontem, um bocadinho mais desfocado talvez, mas lembro-me que ela estava ali dentro de um caixote promocional, daqueles que estão no meio dos corredores dos supermercados e que eu hei-de ter feito uma birra para ma terem comprado. Do preço não me lembro, mas para mim a suntalon amarela não tem preço por isso o dinheiro é o que menos interessa nesta história toda.
A corrente está forte e tenho que estar sempre a remar e a bater os pés para me manter ali no canto do molhe contra a corrente que serve de canal, mas felizmente as ondas insistem em vir na minha direcção, como se me tivessem dado um prémio por ter entrado com o mar assim. Em cima do molhe, para além dos pescadores está um grupo de 4 pessoas a olhar na minha direcção e só por isso já me sinto menos sozinho. Não é preciso dizer que não gosto muito de estar dentro de água sem companhia, até porque acho que o sentimento é partilhado por quase todos os bodyboarders ou surfistas, só que quando entrei estava um tipo lá fora, mas entretanto deve ter sido arrastado pela corrente para o meio da praia, de maneira que eu e aquela esquerda ficámos sozinhos os dois durante quase uma hora. Olhei para o lado para ver por onde andavam os outros e quando olhei para a frente já vinha outra onda com o meu nome escrito. Nem precisei de remar, puxei a prancha para mim, dei ao pé de pato e fiz o drop já na vertical ao mesmo tempo que afundava o pé para agarrar à parede. Imediatamente a onda tapou-me num buraco escuro, mas deixou-me a porta da saída entreaberta. Entretanto devo ter pensado no que penso sempre.
- Porque é que eu estive dez anos sem surfar?
Não sei como, que isto dos instintos não se explica facilmente mesmo por quem tem jeito para as palavras, mas consegui sair e de repente estava numa daquelas situações em que ou sobes ou não sobes. E mais uma vez, não sei no que pensei, mas deve-me ter passado pela cabeça os dentes partidos numa surfada de Inverno com 17 anos e o meu pai lá fora à espera no carro, ou a última cacetada que levei quando decidi mandar-me a uma junção a que de certeza não me devia ter mandado e no tempo que a seguir passei debaixo de água. O que sei é que decidi subir, talvez porque já tinha feito algumas ondas grandes nesse dia e se é verdade que em todas elas tive que andar a fugir, também é verdade que nenhuma delas me apanhou e então lá me cheguei à frente para ganhar velocidade e subi. E vem-me sempre a meio caminho, o protector de dentes que já devia ter arranjado, a hérnia que me visita de ano a ano e o medo da visita acontecer dentro de água num dia assim. Estavam sets com pelo menos 2 metros e aquela junção não tinha menos de metro e meio de água escura. Bati lá em cima e automaticamente fui projectada para a frente, o que daria um invert perfeito não fosse o facto de as minhas pernas quererem levantar por cima de mim. Larguei a prancha mesmo antes de aterrar e passei mais uns bons segundos debaixo de água a rebolar.
- Calma Bruno!
Que os meus pulmões já não são o que eram quando eu andava na natação e treinava quilómetros todos os dias e a realidade é que cada segundo debaixo de água, equivale a uns dez segundos cá fora. Finalmente venho à superfície já sem ar nos pulmões, mas como acho que o medo se combate de frente, decido apanhar outra vez a corrente junto ao molhe para apanhar pelo menos mais uma, só que o vento sopra cada vez mais forte e as ondas quebram cada vez mais fora e cada vez mais desordenadas, o que me obriga a fazer bico de pato atrás de bico de pato, sem que com isso consiga aproximar-se do outside. Os pescadores e os grupo de 4 pessoas continuam em cima do molhe e eu não quero desistir assim, mas os meus braços já não dão mais e como já estou de barriga cheia, dou a jornada por acabada e apanho uma espuma e saio. Fiquei orgulhoso quando vi que o grupo que estava em cima do molhe também saiu e senti-me um bocadinho o herói lá do sítio, até porque entretanto reparei que já só estava um bodyboarder dentro de água a tentar passar a rebentação lá mais para o meio da praia. Não sei se conseguiu, mas também não fiquei a ver. É que o meu irmão passou-me o truque de levar água quente num jerrican comprado na BP e eu já só conseguia pensar em despejá-lo pela cabeça abaixo antes de despir o fato.
São quase 10 da manhã de um sábado de tempestade e eu estou com os pés descalços na pedra gelada e molhada do parque de estacionamento. As primeiras gotas de chuva começam a cair e eu agradeço aos mais sagrados elementos aquele hora e meia de sol e as ondas que o deus Neptuno me mandou. Estou sozinho, mas sinto que tenho comigo toda a gente, o meu pai à espera no carro mas os meus dentes inteiros, a minha mãe em casa a preparar-me qualquer coisa quente para comer, o meu irmão escondido a fotografar-me, o meu companheiro de guerra Titi também ali anda que eu sei, o Gato e a Carina devem estar sentados na esplanada e a Mariana se estiver há-de estar com uma mantinha pelos ombros. Tu eu sei que não estás, porque se estivesses já tinhas saído do carro para me dar um beijo e já estavas a preparar-me o jerrican. A água quente corre-me pelo corpo abaixo e naquele momento penso que tenho um fim-de-semana inteiro pela frente. Fecho os olhos, vejo a minha suntalon amarela e as minhas barbatanas fluorescentes. Ao meu lado está o meu amigo João Paulo com quem comecei a surfar e sem saber como sinto-me um puto de 12 anos outra vez.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Os imprevistos do amor

Confesso que é difícil lembrar-me de como eu era e no que pensava, antes de ter entrado naquela loja onde comprei os ténis verdes e azuis. Lembro-me de ter ido para casa com mais uma daquelas sensações de quem compra algo que ainda não tem a certeza se vai usar e até aposto que pensei que as coisas acontecem quando menos esperamos.
Lembro-me de me ter apaixonado à primeira vista pelo teu aspecto e de ter estranhado tudo o resto.

Contradições,
antevisões falhadas,
nuncas que passam a sempres.
E raramente as coisas são como eu prevejo que possam ser.

E vem-me à cabeça um vídeo viral que uma amiga chegada enviou para todo o grupo de amigos, acompanhada de uma mensagem lamechas, daquelas que nos enchem o peito de ar quente e de que gravei uma frase que me defende sempre que me deparo com certezas que passam a dúvidas ou a outras certezas diferentes, cinzentos que passam a um cor-de-rosa com borboletinhas coloridas que apagam o preto e branco de um desejo antigo, que se perdeu por entre um amor imprevisto de todas as cores do mundo

"Algumas das pessoas mais especiais que conheço, aos 40 ainda não sabem o que fazer da vida"

Numa auto-defesa constante de ataques inventados, como quem tira a mão sem a ter dado primeiro, como quem se julga divertir sem um único sorriso esboçar. A alma, o coração e uma razão desmiolada a estorvar, porque afinal queremos ser felizes sem arriscar, sem que nada façamos para o ser a não ser esperar.

- Tenho que te contar uma coisa.

E esperar que tudo desabe sem saber que já nada há para ruir, que somos apenas nós sozinhos neste mundo e que um dia partimos com arrependimentos de coisas que fizémos mal e de coisas que não fizémos sequer.
Sonhos que já não se querem sonhados, porque tantas vezes a realidade engana a ilusão de que a felicidade só existe nos filmes e abraço-te sempre com a sensação de que te vou perder um dia, porque conheço-me tão bem que acho que não mereço alguém assim.

- O que foi?

Estranhas o meu olhar triste quando te tenho nos meus braços. Acho que ainda ignoras que me recuso a dar-te como um dado adquirido, por achar que isso um dia me fará perder-te por não ser capaz de te ver com o fascínio com que te via nos primeiros dias da nossa paixão. Ou que me recuso a ser feliz por inteiro, só por achar que a melhor forma de crescer é com a dor e com o sofrimento, mas acho que até nisso me enganei. Ou que pura e simplesmente me quero convencer, que sofrendo a fingir de vez em quando, irá fazer com que me doa menos quando for a sério.
Dizes-me que nunca conheceste ninguém como eu e eu digo-te que não sabia que as pessoas como tu eram assim.

- Isso de almas gémeas é coisa que não existe!

Disse isto tantas vezes que me convenci que era verdade, mas hoje à noite quando estiver a tentar manter o fogo da lareira acesa, esqueço-me que todos os fogos precisam de ser mantidos com cuidado e quando te sentares numa almofada ali ao lado para te aqueceres e me disseres,

- És lindo!

Os pólos degelam enquanto o nosso fogo cresce, as florestas são devastadas para criarmos a nossa, a fome dos outros compensa a nossa fartura e a sociedade do eu não entra no nós que nós fizemos os dois. Talvez um dia tudo se perca, talvez um dia o fogo se apague, talvez o mundo deixe de girar sobre si próprio e o planeta se divida entre o frio extremo e o calor do inferno, talvez um dia eu queira o rosa e tenha o cinzento, talvez um dia as certezas nunca deixem de ser certezas e tudo se torne tão prevísivel que eu morro de tédio.


- Beija-me e não digas mais nada

No final ganho prémio do teu sorriso e dos teus olhos que brilham dentro dos meus. Nunca pensei que houvesse quem pudesse ser feliz só com um beijo e muito menos imaginava que eu também pudesse ser assim. Venho da guerra, bato num e bato noutro, desvio-me de uma bala com um reflexo inato, fujo a uma explosão em antecipação e no mesmo segundo olho para o lado e vejo-te a sorrir. E de repente estou debaixo de uma árvore antiga, no cimo de um monte verde e o céu azul deixa-se pintar por um sol de primavera, enquanto por cima de nós se ouvem as cantigas dos passarinhos. Quando leres isto, já sei, vais adorar e eu vou dizer,

- Está mais ou menos...

Abraças-me e dás-me um beijo e desta vez estamos numa praia paradísiaca. Acho que nunca viajei tanto com ninguém sem sair do mesmo sítio. Depois de tanta escrita fiquei na mesma, não me lembro do que sentia quando sai da loja com os ténis verdes e azuis... Será que a gente sente o amor antes de sabermos que ele é amor?